Debate Kamala x Trump: Expressões faciais da democrata foram arma para provocar e manter republicano na defensiva

Debate Kamala x Trump: Expressões faciais da democrata foram arma para provocar e manter republicano na defensiva

Candidata à Presidência dos EUA teve sucesso em desequilibrar o rival durante o debate e em induzi-lo a perder tempo respondendo a alegações áridas a ele

Kamala Harris lança olhar de deboche a Donald Trump durante debate televisivo — Foto: Saul Loeb/AFP

Porto Velho, Rondônia - 
Ela se virou para ele com uma sobrancelha arqueada. Um suspiro silencioso. Uma mão no queixo. Uma risada. Um olhar de lamento. Um balançar de cabeça desdenhoso. Desde os momentos iniciais do primeiro debate contra Donald Trump, Kamala Harris explorou a maior fraqueza do oponente. Não seu histórico, políticas divisivas ou declarações inflamadas. Em vez disso, mirou o ego do republicano.

Em comícios, na rede social que fundou e em sua mansão em Mar-a-Lago, cercado de aduladores, Trump é incontestado, não é desafiado e nunca zombado. Isso mudou ao longo de 90 minutos na Filadélfia na terça-feira, quando a candidata democrata, que nunca havia encontrado o ex-presidente pessoalmente, conseguiu pouco a pouco perfurar seu confortável casulo e provocar irritação e raiva.

Kamala questionou o tamanho e a lealdade das multidões nos comícios de Trump. Ela disse que líderes mundiais chamam o ex-presidente americano de “desgraça”. E afirmou que a fortuna do republicano foi construída por seu pai, remodelando um magnata dos negócios que se orgulha de ser 'self-made man' como apenas mais um “filho do nepotismo”. Então, ela ficou de lado e assistiu, enquanto Trump se autoinfligia dano.

Resposta após resposta, o ex-presidente lembrou aos americanos seu papel em eventos que muitos prefeririam esquecer: a pandemia da covid-19, sua recusa em aceitar os resultados da eleição de 2020, a invasão do Capitólio e a queda do precedente Roe vs. Wade, que garantia o direito ao aborto. Ele falou sobre suas acusações criminais e elogiou Viktor Orbán, o líder autoritário da Hungria. Defendeu uma alegação falsa de que migrantes em Ohio estão comendo os cães e gatos dos vizinhos e reciclou ataques sobre aborto de anos atrás, que afirmam que os democratas apoiam a “execução [de bebês] após o nascimento”.

Em um país tão fragmentado e polarizado, ainda não está claro como o debate desequilibrado pode alterar a corrida presidencial de 2024. Mas a reação imediata foi reveladora: Trump tentou liderar os republicanos em ataques aos moderadores — o debate foi “três contra um”, ele reclamou — enquanto os democratas conquistaram talvez o endosso mais importante do ciclo eleitoral, com a declaração de apoio de Taylor Swift.

— Ele é tão fácil de provocar — disse o governador Gavin Newsom da Califórnia, um aliado de Harris, após o debate.

Kamala Harris ouve resposta de Trump durante o debate com mão no queixo e olhar questionador — Foto: Saul Loeb/AFP

Desde sua ascensão vertiginosa à cabeça da chapa democrata em julho, Kamala enfrentou uma corrida focada em seu histórico, passado e mudanças de posições. Mas desde o momento em que cruzou o palco para apertar a mão de Trump, a candidata presidencial democrata deixou claro sua intenção de transformar uma noite que se esperava sobre ela em um referendo sobre ele.

Ela exibiu uma compostura e uma contenção tática que eram palpáveis pela tela da televisão. Igualmente palpável era a fúria do republicano, que às vezes parecia torná-lo incapaz de sequer olhar para sua oponente.

— Ela é uma marxista — todo mundo sabe que ela é uma marxista — disse Trump quando Harris o acusou de bajular a China durante a pandemia. — O pai dela é um professor de economia marxista, e ele a ensinou bem.

Trump desvia olhar enquanto Kamala fala e gesticula com polegar para baixo — Foto: Saul Loeb/AFP

Kamala olhou para ele com um sorriso condescendente, inclinado de maneira performática para ouvir mais. Trump é o ex-astro da televisão, mas a democrata claramente entendeu o poder do meio de comunicação. Sua expressão era sua réplica. E quando chegou sua vez de falar, ela não se concentrou em refutar os ataques ao seu caráter e ideologia, mas na questão muito mais politicamente potente dos direitos ao aborto.

Trump, ela acusou, baniria o aborto em todo o país e monitoraria as gravidezes das mulheres para garantir que elas levassem o bebê até o fim. Já as restrições atuais em alguns estados, disse ela aos telespectadores, não fazem exceções para vítimas de estupro ou incesto.

— Isso é imoral e não é necessário abandonar sua fé ou crenças profundamente mantidas para concordar que o governo e Donald Trump definitivamente não deveriam dizer a uma mulher o que fazer com seu corpo — disse ela.

Em vez de atacar Trump como uma ameaça existencial à democracia, como o presidente Joe Biden fazia frequentemente, Kamala convidou os eleitores a julgarem o adversário por si mesmos. Ela os incentivou a comparecer a um de seus eventos de campanha, ouvir suas referências a “personagens fictícios como Hannibal Lecter” e suas alegações de que “moinhos de vento causam câncer” e observar seus seguidores saírem mais cedo.

— A única coisa que você não ouvirá ele falar é sobre você — disse ela para a câmera. — Você não ouvirá ele falar sobre suas necessidades, seus sonhos e seus desejos, e eu vou te dizer, eu acredito que você merece um presidente que realmente coloque você em primeiro lugar, e eu prometo a você que eu farei isso.

Trump rapidamente respondeu, mas não para contestar sua crítica de que ele não estava sintonizado com as necessidades dos eleitores. Em vez disso, defendeu suas multidões.

Expressões faciais de Kamala foram parte da estratégia para o debate — Foto: Saul Loeb/AFP

— As pessoas não saem dos meus comícios — disse Trump. — Temos os maiores comícios, os comícios mais incríveis da história da política.

Ao final do debate, a democrata transformou um dos piores momentos da presidência de Biden — a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão — em um ataque a Trump, dizendo que ele “negociou um dos acordos mais fracos que você pode imaginar” com o Talibã e convidou seus líderes para o Camp David.

Até aliados de Trump admitiram relutantemente que a estratégia de Kamala de tentar desequilibrar Trump foi eficaz.

— Ela passou 90 minutos atacando Donald Trump, tentando irritá-lo, para fazer de tudo para se distanciar de seu histórico como vice-presidente dos EUA — disse o deputado Byron Donalds, da Flórida. — Ele se defendeu como qualquer ser humano faria.

Kamala encara Trump durante debate — Foto: Saul Loeb/AFP

Nas últimas semanas, à medida que o entusiasmo em torno da candidatura de Kamala esfriou, as perguntas sobre suas posições políticas e planos cresceram. Muito poucas foram respondidas na noite de terça-feira.

Além da imigração, Trump não atacou efetivamente a rival sobre os altos custos de vida. Suas tentativas de pintá-la como uma indecisa sobre a política energética e outras questões-chave, e como muito liberal para eleitores em estados decisivos, falharam em ganhar tração em meio ao seu foco em reavivar antigas queixas.

Em vez disso, a vice-presidente usou a oportunidade para apelar explicitamente aos eleitores moderados e republicanos anti-Trump que ajudaram a levar Biden a Casa Branca em 2020. É um grupo que ela tem lutado para conquistar pela mesma margem e que poderia, mais uma vez, desempenhar um papel decisivo em novembro.

Enquanto governadores, senadores, ativistas e curiosos políticos analisavam a performance dos candidatos no debate em uma sala com a imprensa na emissora ABC News, um convidado surpresa apareceu de repente e foi cercado por mais de 100 jornalistas. Era Donald Trump. Candidatos presidenciais raramente — se é que alguma vez — analisam suas próprias performances nos minutos após saírem do palco. Mas o republicano não podia deixar passar.

— Foi o meu melhor debate de todos os tempos — disse ele.


Fonte: O GLOBO

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