'Indígenas olham para a comissão do STF como se fosse um terceiro tempo'

'Indígenas olham para a comissão do STF como se fosse um terceiro tempo'

É o que diz Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, sobre a discussão no Supremo do marco temporal. Veja a íntegra

Porto Velho, Rondônia - A semana está sendo marcada pelo conflito com os indígenas Guarani -Kaiowá no Mato Grosso do Sul e pela primeira reunião da Comissão de Conciliação do Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal. Entrevistei Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas e autor da ação que levou o Supremo a considerar inconstitucional o marco temporal.

Eloy Terena é advogado com dois doutorados, um pelo Museu Nacional, outro pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorado em Paris. Ele é de Aquidauana, do povo Terena, do Mato Grosso do Sul. Abaixo, a íntegra da entrevista.

Miriam: Você chegou de madrugada de Mato Grosso do Sul com notícias recentes. O que aconteceu lá e que providências o governo está tomando?

Eloy: Vivemos no Brasil um novo contexto da política indigenista, onde ela é elaborada e executada agora por pessoas indígenas. É uma coisa que a gente precisa registrar.

Sou de Mato Grosso do Sul e estivemos ontem lá numa comitiva liderada pela ministra Sônia Guajajara. Há alguns dias o ministério já vinha monitorando o aumento desses conflitos nos territórios indígenas do Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Sul da Bahia, Ceará. E esses conflitos estão intimamente relacionados com a insegurança jurídica que foi gerada pela discussão novamente do marco temporal no Supremo Tribunal Federal. 

É importante a gente dizer que essa tese já foi declarada inconstitucional no ano passado pelo Supremo e os indígenas olham para essa comissão, dessa tentativa de conciliação, como se fosse um terceiro tempo. O Supremo já disse que é inconstitucional, e, novamente, reabre a discussão para fazer com que os indígenas se sentem à mesa para tentar conciliar determinados interesses sobre seus territórios indígenas. No caso do Mato Grosso do Sul, a situação lá é uma das mais caóticas...

Especificamente em Douradina, o que foi que aconteceu? O que provocou essa explosão?

Já há um bom tempo temos reivindicações territoriais do povo Guarani- Kaiowá. Está atrelado a um erro do Estado no passado, porque há pessoas que receberam títulos concedidos pelo próprio Estado no século passado, são pequenos proprietários, e o Estado à época ignorou a presença indígena, quer dizer, foi concedendo títulos a particulares ignorando a presença dos Guarani- Kaiowá. Então eles reivindicam, há mais de 40 anos, a regularização desses espaços que hoje têm titulares colocados pelo próprio Estado.

No caso de Douradina já tinha sido feita a delimitação do terreno. Essa delimitação Guarani Kaiowá foi feita incluindo as áreas que o Estado concedeu a não indígenas?

Exatamente. No caso de Douradina, temos a terra indígena Panambi-Lagoa Rica. A Funai iniciou todo o processo de identificação e delimitação, que é a primeira fase da demarcação e, em 2011, publicou o relatório antropológico. 

Aproximadamente 12 mil hectares. É um território já identificado como território indígena, e ali estão encravadas também essas pequenas propriedades. Hoje você tem este debate no judiciário. De um lado, a comunidade que reivindica esse direito originário e de outro lado os proprietários que foram colocados ali pelo próprio Estado.

Mas no caso dos eventos, os ruralistas dizem que os indígenas invadiram. E os indígenas dizem que foram agredidos pelos ruralistas. Quem tem razão?

Temos de fato um aspecto que deve ser levado em consideração, que também no século passado, o Estado confinou esses indígenas Guarani-Kaiowá a pequenas reservas de terras. Lá atrás foram criadas pequenas reservas de terras, o Estado confinou esses indígenas dentro dessas reservas e liberou todo o restante território para o processo de colonização, titularização. 

Esse processo que os indígenas fazem hoje de sair das reservas, onde estão confinados, e retomar seus territórios, quer dizer, eles estão reivindicando territórios onde têm ali já uma propriedade encravada. E é nesse processo de retomada que temos essas violências, porque também os proprietários atacam os indígenas. Eles imediatamente provocam também essas ações contra os indígenas.

A Força Nacional ao sair permitiu o começo do conflito?

Exatamente. Ali nesse território, Panambi - Lagoa Rica, tivemos, nas últimas semanas, quatro focos de retomadas, em determinadas partes do mesmo território. Nós tínhamos um efetivo lá que estava fazendo patrulhamento. Então, quando a Força Nacional estava, num determinado momento, fazendo patrulhamento, houve um ataque a um outro ponto da comunidade, que é grande. A Força Nacional, de fato, não era o suficiente para estar nos quatro pontos.

E o que o governo está fazendo para preservar a vida de todos?

Ontem, a ministra esteve lá e apresentou um novo comando local, porque que os indígenas alegaram para nós que tiveram a quebra de confiança do comando local. Estamos dobrando o efetivo, para que eles possam conseguir fazer essa proteção às comunidades indígenas. Outro aspecto importante é que a ministra dialogou tanto com a comunidade indígena, mas também com o grupo de proprietários que estavam lá. 

A principal mensagem que deixamos para eles é que vamos nos empenhar enquanto governo federal para buscar uma alternativa, porque o caso está judicializado. Não adianta a gente também ficar esperando o judiciário decidir. O governo federal precisa se empenhar e estamos nos empenhando em buscar outras alternativas legais para fazer a regularização fundiária da comunidade indígena. E o que os proprietários nos pediram é uma devida indenização.

O ministério e a Funai não exercem mais a tutela no sentido de representar e suprimir a vontade dos povos indígenas.
— Eloy Terena

Supremo decidiu que era o marco temporal inconstitucional. Em seguida, o Congresso aprovou um projeto de lei que restaura o marco temporal. Não preciso ser jurista como você é para saber que projetos de lei não mudam a Constituição. A Constituição só pode ser mudada por proposta de emenda constitucional. Mas o ministro Gilmar Mendes decidiu abrir essa comissão. Há uma discussão sobre se essa comissão deve existir ou não. 

Porque os conflitos existem, você está acabando de falar de um deles. Por outro lado, não se pode discutir se vai ser flexível em relação ao princípio constitucional. Então, como é que você, como secretário-executivo e como jurista, se posiciona diante da existência dessa comissão? Ela deve existir ou não deve existir?

De fato, é uma pergunta complexa. O ministro Gilmar Mendes reuniu ali, nessa proposta de comissão especial, vários temas. Ali estão, de fato, o direito originário dos povos indígenas, a Constituição diz isso claramente. Mas ele trouxe ali outros temas que estão atrelados, como, por exemplo, a questão da indenização aos proprietários. 

Ele atrelou também uma outra ação declaratória de funcionalidade e uma de omissão que trata da mineração em terras indígenas, que são temas que o constituinte de 88 deixou para depois, porque já naquela época era difícil de se tocar nesse assunto.

Ele reúne um conjunto de temas, alguns são cláusulas-pétreas, no nosso entendimento, que não devem ser nem debatidos mais como direito originário. Mas há outros temas que ainda carecem, sim, de um melhor debate, um melhor amadurecimento e querendo ou não o governo federal precisa enfrentar.

Mas você não acha que, ao misturar as duas coisas, parece que está se rediscutindo o marco temporal, fazendo o terceiro tempo desse jogo que já acabou. Uma questão é discutir as indenizações, que até foi colocado no voto de alguns ministros, como o ministro Alexandre de Moraes, tem que discutir as indenizações a quem recebeu de boa-fé terra do Estado. 

Se vai discutir o princípio do marco temporal, nós vamos reabrir uma discussão. Os ruralistas, os representantes deles, que estão na comissão, estão com a expectativa, sim, de mudança, de flexibilização do princípio que rejeitou o marco temporal. Então, isso não é uma armadilha?

Querendo ou não, você abre essa discussão. A União foi um posicionamento firme, através do Ministério dos Povos Indígenas, de afirmar que aquilo que já foi decidido pelo Supremo no julgamento do Marco Temporal para nós não vai ser passível de discussão. Isso já deixamos bem claro como um pressuposto. 

E tudo aquilo que o presidente Lula já expressou por meio de vetos. Tudo aquilo que ele vetou da lei, que foi derrubado pelo Congresso posteriormente, também já é o posicionamento do governo federal. Dentre eles, o marco temporal, para nós, é incabível reabrir essa discussão. Agora, a gente entende, sim, o posicionamento do movimento indígena, o posicionamento dos povos indígenas, que não há por que você sentar numa mesa de conciliação para rediscutir novamente o que já foi dito pelo Supremo. Querendo ou não, os povos se sentem nessa sinuca de bico

Quero saber da sua posição especificamente. Você veio do movimento indígena. Era da Apib, COIAB, você veio dessa militância. Agora você está no outro papel, você está nessa Comissão como governo. O movimento indígena acha que ir para a comissão pode ser essa armadilha.Você acha justo que essa comissão continue sem a presença dos indígenas?

De fato, estamos vivenciando isso a todo momento, não só eu, mas a própria ministra Sonia, que também veio da coordenação executiva da Apib. Quando foi dito isso lá na conciliação pelo magistrado que estava conduzindo a audiência, foi quando eu imediatamente, enquanto ministério pedi a palavra. 

Porque, de fato, a presença do Ministério dos Povos Indígenas e da Funai, hoje liderados por indígenas, não substitui a presença dos povos indígenas. Foi um entendimento claro que deixamos lá. O ministério e a Funai não exercem mais a tutela no sentido de representar e suprimir a vontade dos povos indígenas. E defendi, inclusive, lá a Apib como a organização legítima para estar sentada ali e fazer a representação legítima dos povos indígenas. 

Portanto, a Apib saindo da mesa de diálogo, da mesa de conciliação, não há por que prosseguir. Até porque eles são os maiores interessados e impactados. Isso pra nós ficou bem claro. É claro que o magistrado que estava conduzindo, ele quer colocar a posição de que não irá prosseguir. Mas a União, o ministério como um todo, não tem esse entendimento. Não exercemos esse papel de tutela representativa dos povos indígenas.

Isso foi no passado, é um resquício do passado. Hoje os povos indígenas têm legitimidade para atuar na jurisdição constitucional. Inclusive, eu fui um dos advogados que levei essa ação e hoje os povos indígenas têm o direito de falar diretamente no Supremo. E enquanto a minha percepção de secretário-executivo, a gente vivenciado muito isso no atual governo porque no Ministério passam pautas distintas, a demarcação, a questão da autonomia da Funai, pautas que estão no Congresso que tem que ter a manifestação do ministério. E a gente tem ali muito focado na autodeterminação dos povos.

Uma representante que falou pelos povos indígenas, Judith Kari Guajajara, foi muito veemente, e em determinado momento, disse que evantou uma questão que foi ignorada. Uma pessoa não indígena falou e a questão foi considerada. Vocês estão atentos a isso? Para que os povos indígenas sejam realmente ouvidos? Que a comissão não fique lá uma conversa entre homens brancos ou ruralistas e o Supremo Tribunal Federal?

Achei muito louvável a manifestação da doutora Kari Guajajara, que eu conheço, já trabalhei com ela também no movimento indígena, e o que ela disse é importante, porque de fato a gente vivencia isso, tanto a mulher quanto o indígena. E o indígena advogado, muitas vezes quando ele está em audiência, em situações como essa, quando ele pauta determinadas questões, a gente sente de fato que é colocado como um subtema. 

Quando vem alguém, representante de determinada carreira, traz novamente a questão, às vezes de um modo diferente, é levado em consideração. O nosso papel lá, neste momento, também tem sido este, tanto do Ministério dos Povos Indígenas, quanto da Funai. Tanto é que, na minha intervenção, fiz questão de ressaltar aquilo que o representante da Apib já tinha falado algumas vezes, e foi deixado também de se levar em consideração. Quando a gente tem a possibilidade de falar, enquanto ministério, enquanto órgão de governo, a gente vê também que há uma mudança no tom.

Os indígenas foram barrados na entrada da comissão, o ministro Barroso pediu desculpas, dizendo que era uma falha da segurança. Mas é bem simbólico

O ministro pediu desculpa na hora que iniciou a sessão. Mas é isso, as instituições precisam se acostumar com a presença indígena. Demoramos muito para chegar no Supremo, e eles precisam se acostumar cada vez mais, porque querendo ou não, os povos indígenas olham para o Supremo de fato como a última instância, a última palavra é do Supremo Durante muito tempo a gente ocupou muito o Congresso Nacional, agora estamos no Executivo e o Judiciário precisa também se acostumar com a presença indígena.

Houve dados levantados pela Comissão Pastoral da Terra mostrando o aumento da violência. Em 2023 houve um aumento da violência em relação a povos indígenas, 554 casos de violência contra indígenas e 1.467 indivíduos indígenas foram atingidos. Por que está aumentando a violência se o governo agora é mais atento? O governo anterior não estava preocupado com a questão da perspectiva dos indígenas, mas agora tem um governo preocupado.

O ano de 2023 foi um ano de muita reconstrução. Inclusive reconstrução do apagão que tivemos nas gestões anteriores. Falo isso em relação aos dados de saúde. Temos nos empenhado em dar transparência a esses números e enfrentá-los com uma realidade concreta, que, a partir dos dados certos, é que a gente até consegue traçar estratégias de políticas públicas para poder fazer o enfrentamento.

Neste ano de 2024, a gente quer, sim, superar os números de ações que fizemos em 2023 e dar respostas mais concretas a estes números de violência. Na questão territorial, a gente tem lidado muito com isso, nas últimas semanas, houve um aumento muito grande da violência. E isso é reflexo de outros temas que vão afetando também a política indigenista. A gente tenta fazer, de fato, essa política de proteção, por exemplo, agora está sendo feita a desintrusão ( retirada de não indígenas da terra indígena). 

Os números de desintrusões, Yanomami, Apyterewa, acabamos de entregar até a indígena Karipuna. Você traz esses números de criminalidade que aconteciam dentro das terras indígenas, que antes ninguém sabia. 

Quando a gente vai com a presença do Estado dentro das terras indígenas é que a gente começa de fato a trazer muitos números que antes eram acobertados. Nós temos essa responsabilidade, não temos problema nenhum em lidar com isso com essa pergunta que muitas vezes nos é feita e queremos enfrentar isso a partir desse ponto de vista real. E estamos trabalhando muito para isso.

Apyterewa está completamente desintrusada? Já se pode considerar que o problema acabou ou ainda tem remanescentes?

A desintrusão foi feita. Ela foi a terra indígena mais desmatada na gestão passada. E agora, em maio, nós conseguimos zerar o desmatamento. Isso é um dado concreto. Só que a gente precisa entender o processo de desintrusão e isso é uma política que o ministério está desenvolvendo não só como uma ação militar de ir lá e retirar os invasores, o garimpeiro, o madeireiro, o sojeiro, quem está lá ilegalmente. A gente precisa entender a política de desintrusão como algo que você retira, sim, os invasores ilegais, mas depois você consolida a posse da comunidade indígena.

E o apoio à comunidade Parakanã estava muito atingida, até a questão de saúde, isso também vocês fizeram?

Pós-desintrusão, a gente precisa chegar com um conjunto de políticas, por exemplo, a política de gestão territorial, indígena, aumentar a assistência à saúde. O pós-desintrusão é que nós estamos trabalhando agora, levar projetos de desenvolvimento sustentável para essa comunidade indígena. Porque se você deixar a comunidade lá, olhando para o céu, também vai dar vazão, a criminalidade retornar. A gente tem esse entendimento, nós estamos efetivando essa política de desintrusão.

A gente falou de casos em que houve entrega de títulos de propriedade pelo Estado, no caso do Mato Grosso do Sul, no caso do Sul do país, tem muitos casos assim. Mas na Amazônia, em geral, essas invasões não acontecem porque foi dada uma gleba de terra a alguém. Já fui a terra indígena que estava sendo invadida porque era grileiro mesmo, madeireiro mesmo. A maneira como é conduzida a comissão dá a entender que todos os conflitos com indígenas são porque foram dados terrenos ou terras, glebas a não indígenas. E não é isso. A maioria dos casos é de invasão por invasão mesmo, é isso?

A maioria dos casos é invasão por invasão e boa parte desses casos já foram resolvidos no passado. Boa parte das terras que foram demarcadas encontra-se na Amazônia Legal. É por isso que ali agora a gente está fazendo desintrusão, porque é terra indígena mesmo, quem está lá é ilegal, tem que ser retirado. 

No sul do Brasil, Rio Grande do Sul, Bahia, Mato Grosso do Sul, por que ficou por último a demarcação desses territórios? Porque a gente tem justamente esse embate jurídico, entre título concedido e direito originário dos povos indígenas. E o ministério foi corajoso em levar também essa mensagem para o Supremo e falar da necessidade, no julgamento do marco temporal, de abrir outras modalidades de você fazer a regularização territorial e garantir o território à comunidade indígena.


Fonte: O GLOBO

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