‘Paz deve ser feita com quem faz a guerra na Ucrânia’, afirma principal interlocutor do Vaticano com governo Lula

‘Paz deve ser feita com quem faz a guerra na Ucrânia’, afirma principal interlocutor do Vaticano com governo Lula

Presidente da Conferência Episcopal Italiana, cardeal Matteo Zuppi defende que envolvimento internacional sem negociação com Rússia só alimenta lógica militar

Porto Velho, Rondônia - Suas experiências passadas em guerras civis em Moçambique e na Guatemala como membro da Comunidade de Santo Egídio, deixaram-lhe vários ensinamentos. Foram justamente essas experiências que levaram o Papa Francisco a escolher o cardeal Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha e presidente da Confederação Episcopal Italiana, como enviado do Vaticano à Rússia, Ucrânia e China para conversar sobre as possibilidades de encontrar caminhos para acabar com uma guerra que preocupa, e muito, a Santa Sé. 

“Não se trata apenas de um problema entre Rússia e Ucrânia; o envolvimento da comunidade internacional, sem negociação, significa apenas um envolvimento militar”, disse Zuppi em entrevista ao GLOBO, na sede da confederação, em Roma.

Aos 68 anos, o cardeal, chamado de “padre das ruas” por seu trabalho social, é visto por alguns como um dos possíveis sucessores de Francisco, com quem diz manter uma excelente relação. “Ele [Francisco] deixa as pessoas à vontade. O que não significa fazer o que os outros querem”, diz Zuppi, um dos principais interlocutores do governo Lula no Vaticano.

Suas conversas com o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, são frequentes, e a sintonia entre Brasil e Vaticano é fina. Assim como Lula, o Sumo Pontífice também é questionado pelo governo da Ucrânia por ter uma posição considerada pró-russa: “Falar em negociação não significa ser pró-russo, é não aceitar que se imponha a lógica militar.”

A reunião convocada pela Ucrânia na Suíça para discutir a proposta do presidente Volodymyr Zelensky pode ter sido o início de um processo de paz?

Acho que este encontro é importante. É como quando você vai fazer um terno: primeiro precisa tomar as medidas. Infelizmente, até agora o esforço da comunidade internacional foi para ajudar a Ucrânia em sua legítima defesa, após a invasão russa. A grande discussão é qual é o nível da legítima defesa, até quando? Legítima defesa significa apenas uma atuação na Ucrânia ou também usar armas enviadas para a Ucrânia na Rússia? O ministro da Defesa italiano, por exemplo, é contrário à utilização das armas enviadas pelo Ocidente. 

Outros são favoráveis, porque consideram que faz parte da legítima defesa. Certamente é um grande risco, porque pode levar a uma escalada, e precisamos fazer o contrário, chegar a negociações. Essa é a preocupação da Santa Sé e também do Brasil. Negociar não significa se render, ou capitular. Temos de resolver os problemas não com armas, e sim com o direito internacional. A paz deve ser feita entre as duas partes, mas deve haver também uma terceira parte.

E qual seria a terceira parte?

A comunidade internacional. O problema é encontrar uma posição que seja capaz de dar garantias e chegar a um cessar-fogo. Sem esse envolvimento fica apenas a lógica militar, ou seja, um ganha e o outro perde.

Essa é a lógica que predomina atualmente...

Até agora, infelizmente sim. A Ucrânia diz que precisa de ajuda para vencer, e a Rússia continua com uma lógica militar. A reunião na Suíça é um dos primeiros capítulos de uma negociação, e claro que ajuda.

Ela começa a esclarecer os problemas, e isso, na lógica do diálogo, já é alguma coisa. Tem sua utilidade. A reunião é um dos primeiros capítulos para chegar a uma negociação. Nela, se medem quais são as possibilidades. Mas a paz deve ser feita entre as três partes.

O senhor foi enviado pelo Papa à Ucrânia, Rússia e China, já que o Vaticano, como o Brasil, tem diálogo com os dois lados e posições parecidas. O governo brasileiro e a Santa Sé poderiam ser parte desse terceiro ator numa eventual negociação?

Isso é difícil de responder. O terceiro ator tem de harmonizar as diferenças para ajudar os dois atores [em conflito]. Se o terceiro ator fala a mesma língua de ambos, é muito mais fácil encontrar soluções, dar garantias.

No Brasil, Lula tem sido questionado por adotar, segundo críticos, uma posição considerada pró-russa…

Foi dita a mesma coisa do Papa, mas isso [apoiar uma negociação entre os dois lados] não significa esconder as responsabilidades. A Santa Sé sempre disse que não se pode colocar no mesmo nível o agressor e o agredido. O Papa continua falando em negociação porque não podemos aceitar que as armas sejam a única maneira de solucionar o problema.

Isso implica um retrocesso em relação ao que foi conquistado depois da Segunda Guerra, sobre a necessidade de encontrar autoridades supranacionais capazes de solucionar os conflitos. Se retomarmos a ideia de que somente as armas podem solucionar os conflitos, isso implicaria perder as conquistas dos sobreviventes, que sempre tiveram muito claro que uma Terceira Guerra Mundial seria a última. O problema é que enfraquecemos muito as autoridades supranacionais.

O mundo enfrenta hoje o risco de uma Terceira Guerra?

Temos sempre que levar isso em consideração. Nunca estivemos tão perto de um conflito nuclear. Não se trata apenas de um problema entre Rússia e Ucrânia, o envolvimento da comunidade internacional, sem negociação, significa apenas um envolvimento militar. Por isso pensamos que falar em negociação não significa ser pró-russo, é não aceitar que se imponha a lógica militar.

Brasil e China assinaram uma declaração sobre a guerra. Qual a sua opinião sobre a iniciativa?

Certamente ajudará a entender qual pode ser um cenário possível de negociação. China e Brasil serão importantes — o Brasil sempre é importante na comunidade internacional. Sua única preocupação é a paz, como no caso da Santa Sé. 

O papel da China também é fundamental, e é importante e inteligente que seja feito um esforço com o Brasil. Como a Rússia não foi convidada para o encontro, e não vai aceitar a comida preparada lá, precisarão ser encontradas outras soluções. A paz deve ser feita com quem faz a guerra.

O Papa disse que o mundo vive uma terceira guerra em pedaços. O que ele quis dizer?

Que não existem guerras locais e que, de fato, pela globalização, pelos interesses e influências, os pedaços significam uma guerra mundial. Pense em quantas pessoas já estão diretamente envolvidas, países. A resposta deve ser mundial e envolver toda a comunidade internacional.

O senhor participou do processo de paz em Moçambique. Que aprendizado lhe deixou essa experiência?

Que a paz é possível. Não existe uma fórmula, um algoritmo ou uma inteligência artificial. O verdadeiro problema é se os interesses contra a paz e a favor das armas forem mais fortes. Seria terrível e perigoso para todos. Moçambique me ensinou que só caminhando encontramos a paz. O Papa João XXIII disse que é preciso deixar de lado o que divide e buscar o que une. Eu acrescentaria buscar o que une para solucionar o que divide.

Em suas conversas com Zelensky e com conselheiros do presidente russo, Vladimir Putin, o senhor teve a percepção de que há caminhos possíveis?

Diria que sim, mas até agora as chamas do incêndio são tão fortes que não permitem ver possíveis soluções.

A sintonia entre o Vaticano e o governo Lula é muito forte, não apenas quando o assunto é guerra entre Rússia e Ucrânia…

Sim, por exemplo no combate à fome e na defesa da dignidade humana.

O senhor tem um perfil de austeridade similar ao do Papa. Em Bolonha, preferiu morar numa casa com outros padres, e não numa residência sozinho…

Sim, com padres idosos. Para mim é uma lição contínua sobre a história da Igreja de Bolonha, são pessoas que deram a vida pelo Evangelho. A idade média dos padres é de 90 anos, para eles sou jovem (risos).

Como é sua relação com o Papa Francisco?

Conhecia o Papa quando era arcebispo de Buenos Aires. O relacionamento é como com todos: uma memória incrível, capacidade de buscar entendimento e de fazer qualquer coisa pelas pessoas, pela paz. Ele deixa as pessoas à vontade.

Inclusive chefes de Estado…

Sim, o que não significa fazer o que os outros querem. Pensando diferente sempre há algo que une. O Papa é sempre conciliador.

O senhor ficou surpresa quando Francisco recebeu o presidente da Argentina, Javier Milei, que o agrediu verbalmente durante a campanha?

De forma alguma. O Papa sabe que são campanhas eleitorais, e sempre olha para frente, nunca para trás.


Fonte: O GLOBO

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