Uma das bandeiras do governo Lula, a retomada do setor naval — que chegou a empregar mais de 82 mil pessoas há dez anos — vem esbarrando em uma série de desafios para deslanchar.
Porto Velho, Rondônia - Com estaleiros em recuperação judicial e a expectativa em torno das licitações da Petrobras para novas embarcações, representantes do setor vêm discutindo com o governo a criação de uma nova política de incentivos para o fim deste ano.
As discussões são coordenadas pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) e têm como principais objetivos a ampliação de linhas de financiamento via BNDES, mudanças tributárias e novas regras de conteúdo local (parcela de equipamentos produzidos no país) da indústria do óleo e gás. Recentemente, o BNDES previu que deve aprovar neste ano R$ 5 bilhões em projetos com recursos do Fundo de Marinha Mercante (FMM).
Enquanto isso, a geração de empregos no setor é lenta. Segundo o Sinaval, que representa os estaleiros no Brasil, o setor emprega hoje 26 mil pessoas. A expectativa era de que, a esta altura do ano, 41 mil já estivessem atuando na construção de novas embarcações. Mas, com encomendas atrasadas e gargalos persistentes, a estimativa do setor agora é que esse número de vagas só seja alcançado entre 2025 e 2026.
Ecos da Lava-Jato
A crise começou em 2014, após a revelação dos casos de corrupção na Petrobras pela Operação Lava-Jato. Muitas empresas do setor envolvidas nas investigações foram impedidas de serem contratadas pela estatal. Encomendas foram canceladas e vários estaleiros entraram em recuperação judicial e demitiram em massa. O número de vagas chegou a um mínimo de 15 mil, segundo o Sinaval.
Um dos principais baques foi o cancelamento do projeto de construção de uma série de sondas para exploração de campos de petróleo da Sete Brasil, empresa criada e incentivada nos primeiros governos petistas com participação de fundos de pensão de estatais que terminou inviabilizada pelo escândalo de corrupção. Esse projeto segue em análise no Conselho de Administração da Petrobras, mas ainda não há uma decisão final sobre sua retomada.
O mercado espera ainda a publicação do edital de navios da Transpetro, anunciado no ano passado, cujo total passou de 25 para apenas quatro embarcações neste primeiro momento. A Petrobras está com processo de licitação de seis plataformas em curso e pretende encomendar até o fim do ano 31 embarcações e outras sete em 2025.
Apesar do trauma da Lava-Jato, não foi apenas a corrupção que inviabilizou os estaleiros do Brasil. O setor sempre foi marcado por baixa competitividade em relação à indústria de outros países, agravada pelos projetos frustrados. Para Roberto Levier, consultor de transporte marítimo e setor portuário da FGV Transportes, para evitar o fracasso dos incentivos anteriores ao setor, é preciso combinar volume de encomendas das petroleiras e linhas de financiamento:
— O número de encomendas só vai aumentar quando as empresas, que são as tomadoras dos projetos, sentirem firmeza de que não haverá mudança no meio do processo. Falta uma política pública para o setor para que empresas possam colocar os projetos na rua. Não adianta falar só em financiamento e não tratar das garantias, por exemplo.
A retomada do setor naval é lenta, admitem executivos da indústria e especialistas. Essa recuperação, apontam, terá de passar pelos estaleiros que foram envolvidos na Lava-Jato. Apenas a Odebrecht Ambiental e a Schahin Engenharia (atualmente Base Engenharia) ainda sofrem bloqueio cautelar na Petrobras. As outras empresas já foram reabilitadas para licitações após acordos de leniência.
— É um processo demorado. O setor vai retomar aos poucos e buscar sua vocação com a construção e integração de módulos de plataformas e embarcações de apoio. Perdemos a curva de aprendizado e hoje não conseguimos competir com China, Coreia do Sul e Japão na produção de cascos. Nesse período, estaleiros buscaram serviços de reparos e, agora, o descomissionamento (aposentadoria) de plataformas. Mas é algo paliativo para minimizar prejuízos — conta Sergio Leal, secretário-executivo do Sinaval. — O caminho será lento. Muita coisa foi para o exterior.
Levier, da FGV Transportes, avalia que uma das principais dificuldades da expansão do crédito a um setor com tantas fragilidades financeiras é a falta de um sistema robusto de garantias. O governo tem usado recursos públicos para esse tipo de instrumento financeiro nos últimos anos, mas o especialista aponta dificuldades:
— Hoje, o governo tem outras prioridades, como na área social e fiscal. Se fechar a conta com o que já tem é difícil, imagina colocar mais coisas.
Agentes do setor também destacam a necessidade de ajustes na política de conteúdo local do setor de petróleo. No fim de 2023, os percentuais de conteúdo local passaram de 18% para 30% na fase de exploração, e de 25% para 30%, na etapa de desenvolvimento da produção. Agora, dizem essas mesmas fontes, um dos projetos que estão em discussão com o Mdic e a Petrobras é a criação de uma espécie de “incentivo” financeiro ao conteúdo local.
Operário trabalha em reparo de navio no Estaleiro Mauá, no RJ — Foto: Custódio Coimbra
Novos estímulos
A ideia é criar um “bônus” para as petroleiras que ultrapassarem o nível mínimo de contratação nacional. Além disso, um dos projetos em discussão é o (PL) 02/2024, já aprovado na Câmara, que prevê a redução de 25 para dois anos do tempo para que o valor patrimonial de um navio possa ser depreciado em balanços financeiros. Com isso, haveria redução na base de cálculo de Imposto de Renda e Contribuição sobre Lucro Líquido (CSLL) das empresas de navegação, estimulando a contratação de novas embarcações.
Em outra frente, o governo também pretende adotar incentivos tributários a estaleiros semelhantes aos aplicados recentemente às montadoras de carros elétricos, aumentando o Imposto de Importação e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos importados no setor naval.
Executivos do setor temem que, sem essas alterações, a demanda de navios da Transpetro, subsidiária de navegação da Petrobras, vá para estaleiros no exterior porque os nacionais têm dificuldades na concorrência. Jean Paul Prates, presidente da estatal, disse recentemente que iniciou estudos para a contratação de mais sete plataformas, além das 14 já previstas até agora, para serem instaladas após 2028:
— Com essas encomendas mapeadas, vamos contribuir para o governo recriar um ambiente favorável ao investimento e fornecimento local, ajudando a reabilitação da indústria naval. É importante complementar isso com políticas públicas. Passou aquele período em que vinham de 12 a 15 concorrentes. Hoje temos dificuldade. Temos visto licitações desertas ou em que aparecem um ou dois fornecedores, e sempre os mesmos.
Grupo de trabalho no ministério
Ainda assim, há otimismo. Estima-se que ao menos 16 estaleiros no país têm condições técnicas de disputar contratos. Gisela Mac Laren, que comanda o estaleiro Mac Laren, no Grande Rio, conta que, nos últimos anos, teve de ocupar as instalações com prestação de serviços portuários:
— Isso tem baixíssima engenharia agregada. Estamos diante de um cenário promissor. Temos dois terminais portuários em Niterói com capacidade de atracar 15 embarcações e de construir 18 módulos simultaneamente. Felizmente há uma clareza da importância do setor para a geração de empregos atualmente.
No Estaleiro Mauá, em Niterói, Arialdo Félix, diretor-comercial da companhia, em Niterói, diz que a empresa não foi envolvida na Lava-Jato, mas acabou sofrendo com a falta de encomendas. Tem atuado ultimamente no reparo e fabricação de estruturas submarinas.
— Para essas demandas temos um efetivo de 1,2 mil colaboradores. Mas já tivemos 6 mil postos de trabalho — diz Félix, que espera agora política abrangente para o setor. — É preciso proteger a indústria dos equipamentos importados que podem ser produzidos no país e proporcionar mais competitividade perante outras nações que subsidiam a sua indústria no mundo. Coreia do Sul, Cingapura e Japão são alguns exemplos do sucesso deste tipo de ação.
Procurado pelo GLOBO, o Mdic — liderado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin — afirmou que o grupo de trabalho voltado à indústria naval estuda ações de curto, médio e longo prazo para o setor, envolvendo capacitação de mão de obra, fortalecimento da cadeia de fornecedores, investimentos em pesquisa, questões tributárias, compras públicas e mecanismos de financiamento.
“Tais políticas estão em construção, algumas ainda em fase de estudo, e devem ser finalizadas no segundo semestre”, informou a pasta em nota. A Petrobras afirmou que tem mantido “escuta ativa” do mercado nacional e estimula “que as empresas sanem eventuais pendências operacionais e de conformidade para que estejam aptas” às concorrências.
Fonte: O GLOBO
Tags:
Economia