Lei da oferta e da procura não vale para energia: geração cresce mais que a demanda, mas conta de luz não cai

Lei da oferta e da procura não vale para energia: geração cresce mais que a demanda, mas conta de luz não cai

Produção de energia cresce quase o triplo do consumo no país com fontes renováveis, mas efeito não deve chegar ao consumidor

O sistema elétrico brasileiro desafia a lei da oferta e da procura. Estudo do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) mostra que a oferta de energia no país crescerá quase o triplo do consumo nos próximos anos.

Mas, ainda assim, não há garantia de que a conta de luz ficará mais barata. De 2023 a 2028, a expectativa é que o consumo aumente cerca de 14,53 gigawatts (GW médios), o equivalente a uma usina de Itaipu, enquanto a capacidade instalada subirá 40,4 GW ou 178% a mais.

Em condições normais, o aumento da oferta levaria à redução da tarifa. O problema, apontam especialistas, é que o sistema elétrico brasileiro vem acumulando distorções que acabarão sendo pagas pelos consumidores. Para 2024, a conta de luz do brasileiro deve subir, em média, 5,6% acima da inflação, segundo projeções da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Existem, basicamente, três explicações para esse cenário. O primeiro aspecto é que parte das usinas que não puderem gerar energia no período terá que ser indenizada.

Produção de energia eólica em Pecém, no Ceará — Foto: Domingos Peixoto/Agência O Globo

O segundo fator é o aumento da geração de fontes eólica e solar. De um lado, isso é benéfico por se tratarem de fontes de energia limpa, mas, por outro, são intermitentes, o que vai obrigar o acionamento de termelétricas, mais caras, nos momentos sem vento ou luz do sol.

Decisão do ‘síndico’

Além disso, o terceiro aspecto a levar em conta é o crescimento da chamada geração distribuída, na qual o consumidor produz a própria energia — principalmente com painéis solares nos telhados. Quanto mais gente adere ao modelo, menor a base de clientes das distribuidoras, que arcarão com custos e subsídios do sistema.

— Estamos vendo a triste consequência do excesso de intervenção que alimenta subsídios e outras distorções. Com o aumento das fontes inflexíveis (que não podem ser acionadas e desligadas pelo operador), entre elas solar e eólica, mas não só elas, outras fontes são deslocadas e impedidas de gerar. Elas já começaram a pedir indenizações — afirmou Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel.

Descompasso entre oferta e demanda de energia — Foto: Editoria de Arte

O sistema elétrico brasileiro foi desenhado como uma espécie de condomínio, em que o síndico é o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), e os inquilinos são as empresas geradoras, transmissoras e distribuidoras.

Com energia sobrando no sistema, o ONS terá que permitir que algumas usinas gerem, mas determinar que outras fiquem paradas. E essas que ficarão “paradas” terão que ser remuneradas pelos consumidores.

Esse cenário foi agravado porque diversas fontes receberam incentivos, principalmente via decisões no Congresso, e terão prioridade para gerar energia.

Estarão sempre no primeiro lugar da fila do ONS. Foi assim com as fontes renováveis, como eólica, solar, geração distribuída, mas também com fontes poluentes, como termelétricas a gás nas regiões Norte e Nordeste. Elas entram no sistema de forma “inflexível”.

Água desperdiçada

Uma das consequências dessa sobra de energia é que em 2023 o país bateu recorde de “energia vertida turbinável” pelas hidrelétricas, um jargão do setor elétrico que representa na prática a água que foi desperdiçada de propósito, sem passar pelas turbinas de geração. Isso acontece quando a afluência de água supera a demanda por energia. O percentual bateu em 13%, contra uma média na casa de 3%.

Segundo estudo do Instituto Acende Brasil, 9% do consumo de energia do país poderia ter sido atendido por essa fonte no ano passado. Mesmo com energia de sobra, o IBGE apontou que a energia residencial medida pelo IPCA saltou 9,52% para os consumidores residenciais nesse ano.

A estimativa do Instituto Acende Brasil é que 6% da energia gerada pelas fontes solar e eólica também serão “jogadas fora” a partir de 2027.

— A geração distribuída cresceu de forma descontrolada. E ela não pode ser cortada pelo ONS. Isso levará ao corte de outras fontes, o que irá trazer desequilíbrio para o sistema elétrico e aumento de custos — afirmou Claudio Sales, presidente do Acende Brasil.

Em 2023, a demanda por energia no país foi de 96,45 GW médios, para uma potência instalada de 214,8 GW. Em 2028, o consumo previsto será de 110,98 GW, para uma capacidade de geração de 255,2 GW.

Segundo Sales, do Acende Brasil, o descasamento entre oferta e demanda também foi agravado pela pandemia, que ajudou a frustrar as projeções de consumo no país.

— Estamos com uma sobreoferta estrutural. Nosso parque gerador foi planejado para uma carga (consumo) maior. Houve frustração muito grande, com a pandemia. Isso também influenciou — disse Salles.

O presidente da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), Rodrigo Sauaia, diz que o aumento da geração de energia no país, principalmente das fontes renováveis, atende a um desejo não só do país, mas também do setor, para que a matriz energética do país fique cada vez mais limpa.

Saída pela exportação

Ele entende que uma das formas de se mitigar esse descasamento entre oferta e demanda é o Brasil conseguir aumentar a exportação de energia.

Países como Uruguai e Argentina já possuem linhas de transmissão conectadas ao Brasil, e recentemente a Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, anunciou a construção de uma linha até a Bolívia. Sauaia diz que a demanda no país pode crescer acima do esperado, com o processo de eletrificação de vários segmentos da economia.

— A demanda vai crescer mais por conta da eletrificação dos transportes, a indústria também está trocando seus processos produtivos, de processamentos de matérias-primas, tudo por eletricidade em busca da redução de emissões — afirmou o presidente da Absolar.

Ele entende que é legítimo que o Congresso se envolva em políticas públicas relacionadas ao setor de energia, principalmente diante da necessidade de se combater o aquecimento global. Porém, acredita que medidas ligadas ao planejamento do setor devam ficar a cargo do Poder Executivo.

— Precisamos de marco legal para que existam incentivos, combustível limpo, perspectiva de segurança jurídica, regras claras, transparência, previsibilidade. O prolema é quando a gente começa a ver medidas que têm relação com o planejamento do setor. Há um órgão específico para isso, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que é ligada ao Executivo, e não ao Legislativo — afirmou.


Fonte: O GLOBO

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