A infâmia e a dúvida entre punir e apaziguar

A infâmia e a dúvida entre punir e apaziguar

O que os discursos e as conversas de bastidores mostraram é que há necessidade de punir os responsáveis antes de se superar esses atos

Estive ontem nos dois eventos que lembraram a tentativa de golpe de um ano atrás. O que ficou das conversas de bastidores e dos discursos é que há muito a fazer para garantir que agressões como as de 8 de janeiro de 2023 não se repitam. A sensação que colhi foi que é preciso esclarecer muita coisa e punir muita gente antes de se considerar que o risco passou. 

Foi muito caro mobilizar tantas pessoas, trazê-las do país inteiro, manter acampamentos por dois meses, com infraestrutura, e coordenar atos daquela dimensão, além de bloqueios em diversas estradas e refinarias do país. O que se sabe até agora da origem do grosso do dinheiro é muito pouco.

O presidente do Superior Tribunal Militar, brigadeiro Joseli Camelo, me disse que militares que forem condenados a mais de dois anos pela Justiça Federal serão também julgados pela Justiça Militar. E podem ser condenados à “indignidade para o oficialato” e expulsos das Forças Armadas.

O ministro da Defesa, José Múcio, falou, em entrevista ao “Estúdio i”, de Andréia Sadi, que o evento de ontem poderia reavivar as feridas, cicatrizadas nesse último ano, segundo ele.

— Se não houvesse esse evento de hoje, não estaríamos mais falando sobre isso aqui. Apenas por conta dessas reportagens, dessas entrevistas que foram dadas, essas feridas foram reabertas, mas tenho absoluta certeza de que, em 2024, se Deus quiser, isso deixará de ser assunto — disse Múcio.

A entrevista ocorreu um pouco antes do ato no STF e, quando eu cheguei ao Supremo, ouvi ácidas críticas às declarações do ministro da Defesa. A divergência aqui exposta é mais do que visões diferentes sobre os mesmos fatos. O que o ministro da Defesa está dizendo é que não se deveria lembrar agora para que se possa esquecer e superar. E o que foi dito em todos os discursos no STF e no Congresso é o oposto: é preciso lembrar sim para, só então, superar e evitar que se repita.

O discurso de Paulo Gonet, procurador-geral da República, continha um alerta importante: “Não deve causar surpresa, mas deve ser visto como sinal de saúde da democracia, que pessoas, de não importa que status social, venham a ser responsabilizadas pela prática de atos hostis ao regime político democrático”. Avisou que cabe ao Ministério Público propor os “castigos merecidos”, como forma “de prevenir que o passado que se lamenta não ressurja, recrudescido, e venha desordenar o porvir”.

Essa é a questão: falar menos do assunto para que seja então possível a pacificação ou buscar os culpados e condená-los para, só então, superar? A dúvida já atravessou a República várias vezes. Sempre venceu a ideia de que era melhor apaziguar. O ministro Alexandre de Moraes buscou Winston Churchill para fulminar essa ideia. “Um apaziguador, como lembrado pelo grande primeiro-ministro inglês, é alguém que alimenta o crocodilo esperando ser o último a ser devorado”.

O Brasil preferiu não punir ninguém pelos crimes da ditadura militar, com a ideia de que apaziguar era melhor para curar as feridas. Elas ainda estão abertas. Neste fim de semana, fui ver a magnífica Andrea Beltrão em “Lady Tempestade”, no Teatro Poeira, do Rio, em curta temporada. 

É baseado no diário da advogada de presos políticos nordestinos, a pernambucana Mércia Albuquerque. A plateia é lançada de volta aos terríveis anos de 1973 e 1974 e, no fim, é inevitável a pergunta: como é possível que nada daquela perversidade tenha sido punida? E pior, como foram ressurgir adoradores desse tempo hediondo?

O ministro Alexandre de Moraes lembrou que “esquecimento não significa paz ou união, pois ignorar tão grave atentado à Democracia e ao Estado de Direito seria equivalente a encorajar grupos extremistas à prática de novos atos criminosos ou golpistas”.

Ainda é cedo para a festa, há muito a fazer para proteger a democracia, mas foi bom estar em Brasília ontem e ver a firmeza da defesa de valores por parte de tantas pessoas em postos-chaves. No vídeo do Supremo, a ex-presidente Rosa Weber disse com um pedaço de mármore na mão que ela guardou para lembrar o dia: “Eu não vou esquecer enquanto eu viver”. 

E virou a pedra para mostrar atrás a data de 8 de janeiro de 2023. No STF, fez-se um minuto de silêncio para que se pudesse ouvir todos os ruídos do momento exato da invasão de sua sede. Foi bom ver, rever e novamente ouvir, para não esquecer. ( Com Ana Carolina Diniz)


Fonte: O GLOBO

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