Parceria entre UFF e Defensorias Públicas de SP e RJ vai produzir laudos independentes em investigações de mortes por intervenção policial

Parceria entre UFF e Defensorias Públicas de SP e RJ vai produzir laudos independentes em investigações de mortes por intervenção policial

Projeto Mirante recebeu aporte de R$960 mil da Secretaria de Acesso à Justiça, do governo federal; Corte Interamericana já determinou que Brasil tivesse mecanismos independentes de investigação

Somente ano passado, 1.750 pessoas foram mortas por policiais no Rio e São Paulo e em muitos desses casos moradores de comunidades, espaços comumente alvos das operações, denunciaram abusos e truculência dos agentes. 

Mas nem sempre há provas suficientes para essas acusações. Agora, uma parceria do Grupo de Estudos dos Novos Ilegal ismos (Geni) da UFF com as Defensorias Públicas de São Paulo e do Rio fortalecerá a produção de dados e evidências para os processos judiciais, a partir da aplicação de ciência forense. 

O Projeto Mirante, como é chamado, recebeu um aporte de R$960 mil da Secretaria de Acesso à Justiça (Saju) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e tem como objetivo fazer mil análises de informações por ano, em especial a revisão de laudos de balística e de reconstituições que ajudem a esclarecer causas de mortes em operações policiais.

— A ideia é consolidar uma linha de pesquisa bastante inovadora e incipiente no Brasil, que é a aplicação das ciências forenses na área dos direitos humanos - afirma o pesquisador Daniel Hirata, coordenador do Geni. 

— Atuaremos nos casos de violência institucional, na revisão e elaboração de laudos criminais, como laudos de balística, necropsia e laudo de local (reconstituição). Vamos produzir material de excelência, para que possa ajudar na resolução desses processos que envolvem violência institucional. E ano que vem faremos um curso de extensão universitária nessa linha de ciências forenses.

No Brasil, somente as autoridades policiais podem realizar esses tipos de laudos. Por isso, caberá ao projeto apenas as revisões e complementações a serem juntados nos processos. Um caso em que os pesquisadores do Mirante estão atuando é a apuração das mortes das primas Emily e Rebecca, de 4 e 7 anos, durante uma operação policial na comunidade do Sapinho em Duque de Caxias, há dois anos. 

Na época, familiares disseram que PMs teriam sido os responsáveis pelos tiros, mas a perícia policial descartou essa hipótese e então o inquérito que investigava cinco agentes foi arquivado. A denúncia do Ministério Público do Rio indicou que traficantes atiraram por engano nas meninas, tentando atingir os policiais.

Mortes por intervenção policial em 2022
  • Brasil: 6.430 mortes
  • Bahia: 1.464
  • Rio de Janeiro: 1.330
  • São Paulo: 419
O projeto Mirante agora vai tentar reabrir o caso, e com seu próprio laudo investigar de onde vieram os projéteis, numa atuação em conjunto com o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio (Nudedh / DPRJ).

— Em outros países há atuação de órgãos independentes nas perícias, mas aqui precisamos aguardar primeiro a polícia. É um gargalo na nossa situação porque as próprias instituições que cometem violações são as que fazem a instrução dos inquéritos e os próprios laudos. 

Não me parece saudável para ninguém, nem para familiares de vítimas nem as polícias essa falta de independência — explica Hirata, que complementa que as provas independentes podem ser juntadas aos processos ou até divulgados para cobrança das devidas apurações.

 — Muitos desses casos envolvem crianças, como houve na Cidade de Deus agora (morte do menino Thiago Menezes, de 13 anos, durante operação). Os processos do Nudedh, que vamos atuar, normalmente pedem responsabilização por uso indevido da força de agentes públicos.

Além de laudos de balística, as reconstituições de cena são outro trabalho importante que o projeto pode realizar de forma independente. Mesmo em cenas de crimes já desfeitas, as reconstituições paralelas utilizam relatos de moradores, vídeos, fotos e áudios, além de indícios nos próprios locais, que proporcionam a elaboração de um laudo que complemente a oficial. Um elemento técnico destacado por Hirata é a reconstituição em 3D, uma tecnologia que pode ser utilizada pelo Mirante.

Em São Paulo, o Mirante está atuando no caso do massacre do "baile da 17", em Paraisópolis, onde nove jovens foram mortos e outros 12 feridos durante uma operação policial em 2019. Desde o episódio, moradores denunciam que houve abuso dos agentes e em dezembro haverá uma audiência de instrução que pode levar 13 policiais para o júri popular. Segundo o Ministério Público de São Paulo, os PMs fecharam as vias de acesso ao baile e jogaram bombas em direção às vítimas. O laudo necroscópico confirmou que a maioria morreu asfixiada por sufocação indireta.

Daniel Hirata explica que a ideia inicial é trabalhar com 100 laudos por ano, o que já representa um avanço, mas ainda está longe de dar conta de todos os processos dessa natureza. Por isso, é necessária uma triagem dos casos, mas episódios graves, como os recentes na Cidade de Deus, no Rio, e na Baixada Santista, em São Paulo, são exemplos de processos que podem vir a contar com a atuação do Mirante.

No ano passado, 6.430 pessoas morreram por intervenções policiais no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Somente Bahia e Rio concentram 43% dessas mortes: foram registradas 1.3330 vítimas no Rio e 1.464 na Bahia. Em São Paulo, o número de mortes ano passado foi de 419. Nesta quinta, em agenda no Rio, o presidente Lula afirmou que um policial "que atira num menino que já estava caído é irresponsável e não estava preparado", em referência à morte de Thiago Menezes na Cidade de Deus.

— O projeto é um primeiro passo que possamos fazer algo na escala do problema que temos, e que pode impulsionar a nível nacional. Já tivemos algumas experiências mais pontuais, mas a ideia é que consigamos trabalhar de forma mais ampla agora — conclui Hirata

Corte Interamericana determinou criação de investigações independentes

A aplicação de mecanismos de investigações independentes em casos de violência policial já havia sido solicitada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2017, numa sentença sobre o caso do massacre na favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, no Rio. Na época, duas operações policiais, em 1994 e 1995 resultaram em 26 mortes, além da denúncia de três mulheres estupradas. Os 13 policiais envolvidos só começaram a ser julgados em 2021.

A sentença da CDIH foi a primeira condenação aplicada contra o estado brasileiro e, entre as determinações, a corte solicitou investigações imparciais sobre o caso e que fossem estabelecidos no país "órgãos independentes de supervisão, inclusive os órgãos forenses, para enfrentar o padrão de impunidade dos casos de execuções extrajudiciais por parte da polícia"

Essa decisão foi destacada pelo titular da Secretaria de Acesso à Justiça do MJSP, Marivaldo Pereira. Além da necessidade de cumprir a recomendação da CIDH, a demanda foi levada ao governo federal pelo Movimento Mães de Maio, formado por mães e familiares de vítimas da letalidade policial. Em junho, após um encontro, o ministro da Justiça, Flavio Dino, afirmou que o tema seria uma prioridade do governo.

— Outras instituições já vinham tentando buscar justiça e esclarecimento para entender o que efetivamente aconteceu em casos de mortes durante operações policiais. O Projeto Mirante ilustra uma mudança de postura do governo federal no sentido de apoiar esses esforços em âmbito local. Isso pode ajudar nas investigações, que hoje infelizmente ficam sem conclusão em grande parte — explica Pereira, que acrescenta que o investimento ajudará no desenvolvimento de laboratórios universitários de ciências forenses, setor que a UFF hoje é uma referência.

Investimento em câmeras nos uniformes policiais

Além do Projeto Mirante, o secretário diz que outras medidas serão tomadas com vistas à redução da letalidade policial, como acolhimento psicológico de mães das vítimas. Outro foco é o investimento nas câmeras de segurança nos fardamentos de policiais militares, programa que existe em São Paulo, e que conta com experiências no Rio, Santa Catarina, Rondônia e Pará. 

Há conversas em curso com o governo da Bahia, estado que desbancou ano passado o Rio como líder de mortes por intervenção policial (1.464), para aplicação de uma experiência modelo. Com apoio da Saju, o governo estadual laçou uma licitação para compra de 200 câmeras, como fase teste.

— Queremos que esse modelo tenha impacto na redução do número de policiais mortos e de jovens mortos em operações, e sirva como parâmetro em outras experiências. Hoje, 22 estados discutem a implementação das câmeras em fardamentos policiais. 

A transparência é elemento essencial para que episódios como o de Guarujá nunca mais aconteçam — diz o secretário, que explica que as câmeras são benéficas aos próprios policiais. 

— Para que a maioria dos policiais, que age dentro da lei, não seja penalizada por aqueles que desviam dos protocolos é muito importante que o controle externo da atividade policial e as investigações funcionem. Se um policial executa um adolescente caído no chão é crime. O que está em jogo é a própria legitimidade da corporação.

Em São Paulo, estudos apontam que houve redução da letalidade policial após a instalação das câmeras em uniformes dos agentes. Entre 2019 e 2022, houve uma queda de 66.7% das mortes de adolescentes de 15 a 19 anos em decorrência de intervenções policiais, de acordo com a pesquisa “As câmeras corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo: processo de implementação e impacto nas mortes de adolescentes”, da Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O uso das câmeras começou em 2020.


Fonte: O GLOBO

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