"Drogas gourmetizadas": grupos de classe média alta de SP já usam óleo de maconha no vape

"Drogas gourmetizadas": grupos de classe média alta de SP já usam óleo de maconha no vape

Denarc já detecta uso da droga vendida por "nichos" que abastecem grupos pequenos de até 10 pessoas com poder aquisitivo mais alto; "é um segmento que estão inventado", diz delegado

Estatísticas recentes de apreensões do Departamento Estadual de Investigações sobre Entorpecentes de São Paulo (Denarc/SP) jogam luz sobre o que a polícia vem chamando de ascensão das "drogas gourmetizadas". Além da maior apreensão de haxixe e skunk — variações mais caras da maconha —, o que mais chamou a atenção foi a aparição, de forma inédita no ano passado, de óleo de cannabis nas operações policiais. 

O produto, que é importado dos EUA ou da Europa, vem sendo encontrado pelos agentes em "centrais de distribuição" nichadas, que fornecem a substância para cerca de 10 revendedores, número reduzido dentro do padrão no comércio ilegal de drogas.

— É um segmento que estão inventando — afirma o delegado Carlos César Castiglioni, titular do Denarc/SP. — Nas casas bomba (nome dado às "centrais de distribuição" de drogas, que vendem para bocas de fumo) das áreas periféricas encontramos maconha, cocaína, crack, microponto de K. Já nas apreensões no Jardins (bairro de classe média alta de São Paulo), encontramos os vapes com óleo de maconha, haxixe, lsd e skunk, que são as mais caras, é meio setorizado. 

Por ser caro, acaba não tendo muita penetração na periferia. Aqui a gente começou a falar em "droga gourmetizada", até as embalagens são mais elaboradas, com aparência mais requintada.

Até 2021, o Denarc nunca havia registrado apreensão de óleo de maconha em frasco ou em refil para vapes ou cigarros eletrônicos. No ano passado houve os primeiros registros, com apreensão de 581 mililitros. Em 2023, até o início deste mês, foram apreendidos 231 mililitros de óleo.

Além da utilização nos chamados Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs), o delegado explica que o óleo já foi encontrado em seringas, para ser aplicado como um "tempero" por cima do fumo, dentro da seda, em que os "baseados" são enrolados.

— O que estou percebendo é uma banalização com droga muito grande, o que me preocupa muito, não só como policial, mas em relação à saúde pública — afirma Castiglioni, que lembra que muitas das novas drogas "criadas" em laboratórios clandestinos possuem impurezas em suas fórmulas, especialmente as mais baratas.

Segundo Castiglioni, diferentemente das outras variações de maconha, o óleo não é produzido no país, até onde se sabe . O mais provável é que o produto seja importado dos EUA, Canadá ou países europeus, onde o mercado é legalizado. Ao chegar no Brasil, o óleo seria distribuído a partir de "centrais" menores que as famosas casas bomba, como o delegado definiu.

— Normalmente uma casa bomba fornece para várias biqueiras (bocas de fumo). Já essas casas menores, que têm drogas mais caras, distribuem para 10 a 12 revendedores quando muito. Em muitos casos são pessoas que estão na linha limítrofe entre traficante e usuário. Às vezes revendem para sustentar o próprio vício, já que é um produto caro — explica o titular do Denarc.

Além de ter um nível maior de pureza, o óleo de maconha é consumido de forma mais "discreta", destaca Carlos Castiglioni, o que favorece o uso até em público.

— Não tem todo aquele ritual de apertar um baseado, é muito mais prático. Até o cheiro é mais suave e produz menos fumaça.

Esse aspecto é uma das explicações para o crescimento do DEF ou vape no Brasil, onde aproximadamente um a cada quatro jovens de 18 a 24 anos já utilizou ao menos uma vez o cigarro eletrônico, aponta a pesquisa Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia, elaborada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e pela organização global de saúde pública Vital Strategies, publicada em junho.

Aumento de consumo de dispositivos eletrônicos preocupa pesquisadores de saúde

Desde 2009, a venda dos DEFs está proibida no Brasil, de forma preventiva, pela Anvisa. Desde então, um processo regulatório vem tramitando e no ano passado a agência publicou um novo relatório, que pede a manutenção da proibição a partir de evidência científicas que comprovam o dano das substâncias. A resolução final ainda não tem prazo para ser concluído.

— No geral, qem usa os DEFs são pessoas mais jovens, atraídos pela inovação tecnológica e pelo aditivo de sabor — afirma a pesquisadora Neilane Bertoni que publicou, em 2019, junto com André Salém Szklo uma pesquisa sobre o perfil de uso do DEF no Brasil, após 52 mil entrevistas telefônicas.

Eles identificaram que enquanto cigarros são consumidos, na maioria, por pessoas mais velhas e mais pobres, os DEFs são hábito dos mais jovens e de maior poder aquisitivo. No entanto, os dispositivos eletrônicos vêm se popularizando cada vez mais e o temor de Bertoni é que esse novo mercado resulte no retrocesso do controle de tabagismo houve no Brasil nas últimas décadas.

— É um fumo mais fácil, prático, e como pode misturar sabor mascara muito um gosto ou um cheiro que originalmente não é tão bom. E uma pessoa que está próxima às vezes nem sabe o que a pessoa está fumando, socialmente acaba sendo mais aceito — explica a pesquisadora.

É muito comum que pessoas usem o DEF para fumar tabaco com sabor, mas o uso do óleo da maconha é outra realidade, confirma Bertoni. A pesquisa, porém, não diferenciou o tipo de fumo consumido nos dispositivos, que se dividem basicamente entre cigarro eletrônico, onde se coloca um óleo; vaporizador, usado para vaporizar tabaco ou plantas secas; e os tabacos aquecidos, que são um "minicigarro" que já vem com o fumo acoplado.

Segundo Bertoni, ainda não há estudos avançados que indicam se o uso da maconha é mais danoso através dos "baseados" tradicionais ou cigarros eletrônicos. Mas ela destaca que a doença pulmonar EVALI, maior preocupação em relação aos efeitos dos DEFs atualmente, vem sendo diagnosticada na maioria das vezes associada ao uso de THC, ou seja, de óleo de maconha.

— Muitos casos estão sendo registrados nos EUA, e mais da metade dos casos têm relação com THC. No Brasil ainda não há tanto registro, talvez porque a proibição da venda esteja segurando o problema, mas pode ser o início de uma situação que vamos ver mais. Inicialmente o que era pensado é que como cigarro eletrônico não tem queima seria menos danoso para o pulmão. Mas o que está vendo hoje não é isso, porque há várias doenças associadas pelo uso desses dispositivos — conclui Bertoni.


Fonte: O GLOBO

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