Aquecimento global na vida real

Aquecimento global na vida real

Ninguém mais pode ignorar que o desastre natural no país pobre pode ser o estopim da próxima epidemia no país rico

Quem achou que os efeitos das mudanças climáticas só seriam sentidos pelas próximas gerações, e que aumentar em um ou dois graus a temperatura do planeta não ia fazer diferença, perdeu a aposta. A maior frequência de eventos como secas, enchentes, incêndios, a incidência de doenças antes tipicamente tropicais em áreas de clima temperado, tudo isso deixa claro que os efeitos do aquecimento global já estão aqui.

Os impactos, entretanto, são mais sentidos pelos mais vulneráveis. Estudo publicado na revista Nature mostra que, no continente africano, as mudanças climáticas deixam marcas profundas. Etiópia, Somália e Quênia sofrem desde 2020 com a seca mais longa da história da região, resultando em mais de 20 milhões de pessoas desnutridas. Deslizamentos de terra causados por enchentes em Serra Leoa mataram mais de mil pessoas, deixando uma multidão de desabrigados.

Outro artigo, este publicado pela Aliança Global para Vacinas e Imunizações (GAVI), chama atenção para os efeitos do aquecimento global no controle da Aids em países asiáticos, onde a incidência da doença e os riscos gerados pelas mudanças climáticas convergem. 

O aquecimento global gera maior deslocamento de populações afetadas por intempéries, maior insegurança alimentar e menor acesso à saúde. Isso dificulta a manutenção do tratamento de pacientes com Aids. Embora a circulação do HIV não seja sensível a mudanças de temperatura, diversas doenças oportunistas são – e estamos falando de pacientes imunossuprimidos.

Regiões pobres do planeta têm menos preparo para enfrentar desastres naturais. Os autores na Nature trazem o exemplo do ciclone tropical Idai, em 2019, que atingiu Madagascar, Malawi, Moçambique e Zimbábue. 

Os países foram pegos de surpresa, já que não dispunham de sistemas de aviso prévio que permitissem organizar o deslocamento da população. Mais de mil morreram. Já nos EUA, em 2021, o furacão Ida foi detectado com antecedência suficiente para retirar moradores de regiões de risco. Menos de 100 pessoas morreram.

A Organização Meteorológica Mundial mantém uma rede de sistemas de monitoramento hidrometeorológico. Esta rede mostra que Europa e EUA têm 636 estações de radar que podem detectar desastres naturais. 

Na África, são apenas 37. Se considerarmos as dimensões do continente africano, o déficit é ainda mais chocante. Some-se a isso o fato de que mais da metade das estações meteorológicas existentes na África não são equipadas o suficiente para gerar dados robustos com a antecedência necessária.

Quando falamos de prevenção de novas epidemias e pandemias, pensamos logo em construir fábricas de vacinas e sistemas de vigilância epidemiológica, o que é certamente essencial. Mas será suficiente? É preciso investir em sistemas complexos e integrados de preparação. Isso inclui as vacinas e vigilância, mas também monitoramento de desastres naturais e ambientais. 

Desastres como enchentes podem contaminar a água potável e acelerar a disseminação de doenças. Secas deixam as pessoas desnutridas e, portanto, mais vulneráveis a patógenos. Desastres e aumento de temperatura em geral põem animais, que podem ser reservatórios de vírus e bactérias, em movimento.

Estamos todos conectados. Razões humanitárias deveriam ser suficientes para que países desenvolvidos contribuam para estabelecer sistemas de detecção em países vulneráveis. Mas mesmo que o egoísmo fale mais alto, ninguém mais pode ignorar que o desastre natural no país pobre pode ser o estopim da próxima epidemia no país rico. Se não for por altruísmo, que seja por interesse próprio. Não fazer nada pode ser desastroso para todos.


Fonte: O GLOBO

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