Ex-correspondente do NYT em Moscou, Steven Lee Myers afirma que sistema de controle personalizado torna difícil pensar em mudança de regime
Porto Velho, RO — O jornalista americano Steven Lee Myers, chefe do escritório do New York Times em Pequim, foi correspondente do jornal em Moscou de 2002 a 2007 e de 2013 a 2014, quando observou tanto a ascensão de Vladimir Putin, ponto de partida de seu elogiado “O novo czar”, lançado nos EUA em 2015, com edição no Brasil pela Amarilys, quanto a anexação da Crimeia, na primeira invasão da Ucrânia pelo país vizinho.
De Seul, onde vive desde março de 2020, quando o governo chinês suspendeu o visto de imprensa de 18 jornalistas americanos, entre eles colegas seus do NYT, Wall Street Journal e Washington Post, ele conversou por e-mail com O GLOBO sobre a trajetória singular de Putin, seus erros de cálculo na invasão da Ucrânia, a possibilidade de mudança de governo em Moscou e o papel da China na estratégia do Kremlin, entre outros tópicos.
O que mais o impressionou em Putin?
O quão extraordinária foi a ascensão dele. Putin cresceu pobre na União Soviética e entrou na KGB com uma noção muito romântica de sua função de servidor público.
O jornalista americano Steven Lee Myers, chefe do escritório do New York Times em Pequim, foi correspondente do jornal em Moscou Foto: Reprodução/NYT
Na Rússia, a aprovação de Putin bateu recordes após a anexação da Crimeia. O senhor acredita que ele apostou em algo similar ao ordenar a invasão da Ucrânia?
Foi outro cálculo errado. Putin não acreditou que haveria tamanha reação à invasão, e não só na Ucrânia, mas também na Rússia, onde há profundas dúvidas sobre o que está de fato acontecendo em um país tido como irmão.
O protesto da jornalista Marina Ovsyannikova, ao vivo, na televisão, parece ilustrar a falta de unanimidade na opinião pública russa sobre a invasão da Ucrânia. Putin vencerá a guerra de informações internamente?
O que a nova legislação que criminaliza qualquer ato de oposição interna à guerra revela é a preocupação do Kremlin com a falta de apoio maciço à decisão de invadir a Ucrânia. Muitos russos saíram do país em protesto e outros seguirão demonstrando internamente sua oposição à guerra, apesar dos riscos.
Com as sanções dos EUA e Europa, a Rússia só tem a China para se apoiar no caso da extensão do conflito. Em análise publicada três dias após a invasão da Ucrânia, o senhor argumentou que o conflito testará os laços entre Putin e Xi Jinping. Quais as semelhanças e diferenças entre os dois líderes?
Eles tiveram de fato muitos encontros privados e celebrações públicas e suas origens são semelhantes. Os dois são da mesma geração —Xi tem 68 anos e Putin, 69 —, e cresceram em sociedades comunistas desconfiadas do Ocidente capitalista. Pequim, no entanto, tem se mostrado dúbia em relação ao conflito.
As possibilidades hoje estão todas abertas, mas Putin é obcecado pela sucessão desde que foi eleito pela primeira vez. E mudou a Constituição para poder seguir no poder até 2036. Ele criou um sistema de comando personalizado que dificulta a ideia de qualquer outra pessoa tomar o poder na Rússia. E está decidido a manter as coisas desse jeito.
O governo da Ucrânia denunciou o uso de tortura e de atos terroristas praticados pelas Forças Armadas russas. Se comprovado, o senhor acredita que Putin estaria ciente dos crimes de guerra?
Especialistas no tema é que precisam decidir se há terrorismo e tortura na invasão. Putin foi protagonista de muitos conflitos armados: Chechênia, Geórgia, Síria, Ucrânia. Ele é consciente das perdas humanas que os conflitos causaram. A questão é o peso que elas têm na busca de seus objetivos geopolíticos. Enquanto esteve na KGB, ele jamais serviu nas Forças Armadas.
O senhor argumenta que Putin não tem nostalgia da URSS e sim do império russo, vide o título de seu livro. Dos líderes históricos do tempo dos czares, de quem o senhor acredita que Putin se vê mais próximo?
Ele é completamente sui generis, experimenta a História como se estivesse em um restaurante self-service, escolhendo pratos de acordo com a necessidade do momento.
Fonte: O GLOBO
De Seul, onde vive desde março de 2020, quando o governo chinês suspendeu o visto de imprensa de 18 jornalistas americanos, entre eles colegas seus do NYT, Wall Street Journal e Washington Post, ele conversou por e-mail com O GLOBO sobre a trajetória singular de Putin, seus erros de cálculo na invasão da Ucrânia, a possibilidade de mudança de governo em Moscou e o papel da China na estratégia do Kremlin, entre outros tópicos.
O que mais o impressionou em Putin?
O quão extraordinária foi a ascensão dele. Putin cresceu pobre na União Soviética e entrou na KGB com uma noção muito romântica de sua função de servidor público.
Ele é um exemplo de sucesso da educação soviética e jamais demonstrou ter ambição política, nem tinha real conexão com a elite do país, até o colapso da URSS. Putin chegou em Moscou em 1996 para exercer um cargo burocrático de baixo escalão e, três anos depois, se tornou presidente, sem nunca antes ter disputado cargo eletivo.
Ora, se tivesse acontecido nos EUA, teríamos um nome para isso: alguém que viveu o “sonho americano”.
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, não aparece em seu livro, que termina em 2014. O senhor acredita que Putin o subestimou?
O mundo inteiro está impressionado com a coragem e a liderança demonstrados por Zelensky. Ele se comunica de forma direta e efetiva com os ucranianos e com o Ocidente, mas também com os russos, e em russo.
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, não aparece em seu livro, que termina em 2014. O senhor acredita que Putin o subestimou?
O mundo inteiro está impressionado com a coragem e a liderança demonstrados por Zelensky. Ele se comunica de forma direta e efetiva com os ucranianos e com o Ocidente, mas também com os russos, e em russo.
A experiência anterior dele como ator o ajudou muito. Putin afirmou que a Ucrânia era governada por drogados neonazistas.
Mesmo que tenha se expressado de modo propositadamente exagerado, fica claro que ele não entendeu quem era Zelensky. Ele o subestimou, mas não apenas. Putin também subestimou a capacidade das elites do país vizinho e a determinação do povo ucraniano de defenderem o país deles.
O jornalista americano Steven Lee Myers, chefe do escritório do New York Times em Pequim, foi correspondente do jornal em Moscou Foto: Reprodução/NYT
Na Rússia, a aprovação de Putin bateu recordes após a anexação da Crimeia. O senhor acredita que ele apostou em algo similar ao ordenar a invasão da Ucrânia?
Foi outro cálculo errado. Putin não acreditou que haveria tamanha reação à invasão, e não só na Ucrânia, mas também na Rússia, onde há profundas dúvidas sobre o que está de fato acontecendo em um país tido como irmão.
O protesto da jornalista Marina Ovsyannikova, ao vivo, na televisão, parece ilustrar a falta de unanimidade na opinião pública russa sobre a invasão da Ucrânia. Putin vencerá a guerra de informações internamente?
O que a nova legislação que criminaliza qualquer ato de oposição interna à guerra revela é a preocupação do Kremlin com a falta de apoio maciço à decisão de invadir a Ucrânia. Muitos russos saíram do país em protesto e outros seguirão demonstrando internamente sua oposição à guerra, apesar dos riscos.
Com as sanções dos EUA e Europa, a Rússia só tem a China para se apoiar no caso da extensão do conflito. Em análise publicada três dias após a invasão da Ucrânia, o senhor argumentou que o conflito testará os laços entre Putin e Xi Jinping. Quais as semelhanças e diferenças entre os dois líderes?
Eles tiveram de fato muitos encontros privados e celebrações públicas e suas origens são semelhantes. Os dois são da mesma geração —Xi tem 68 anos e Putin, 69 —, e cresceram em sociedades comunistas desconfiadas do Ocidente capitalista. Pequim, no entanto, tem se mostrado dúbia em relação ao conflito.
Xi não condenou a invasão da Ucrânia, mas também não a apoiou oficialmente. Ele parece mirar em como se beneficiar do enfraquecimento dos dois lados, observa muito antes de se mexer em direção a um deles.
Sem esquecer, porém, que não pensou duas vezes ao repetir as mensagens de desinformação vindas de Moscou que culpam os Estados Unidos pela guerra.
Em artigo publicado no Financial Times, o acadêmico Anatol Lieven disseca os “siloviki”, elite russa mais próxima dos ouvidos de Putin do que os oligarcas. Ele escreve que a questão central, após possíveis crises militar e financeira enfrentadas pela Rússia por causa da guerra, é se estes “homens fortes” teriam a capacidade de derrubar Putin ou convencê-lo a deixar o poder. Há probabilidade de isso acontecer?
Em artigo publicado no Financial Times, o acadêmico Anatol Lieven disseca os “siloviki”, elite russa mais próxima dos ouvidos de Putin do que os oligarcas. Ele escreve que a questão central, após possíveis crises militar e financeira enfrentadas pela Rússia por causa da guerra, é se estes “homens fortes” teriam a capacidade de derrubar Putin ou convencê-lo a deixar o poder. Há probabilidade de isso acontecer?
As possibilidades hoje estão todas abertas, mas Putin é obcecado pela sucessão desde que foi eleito pela primeira vez. E mudou a Constituição para poder seguir no poder até 2036. Ele criou um sistema de comando personalizado que dificulta a ideia de qualquer outra pessoa tomar o poder na Rússia. E está decidido a manter as coisas desse jeito.
O governo da Ucrânia denunciou o uso de tortura e de atos terroristas praticados pelas Forças Armadas russas. Se comprovado, o senhor acredita que Putin estaria ciente dos crimes de guerra?
Especialistas no tema é que precisam decidir se há terrorismo e tortura na invasão. Putin foi protagonista de muitos conflitos armados: Chechênia, Geórgia, Síria, Ucrânia. Ele é consciente das perdas humanas que os conflitos causaram. A questão é o peso que elas têm na busca de seus objetivos geopolíticos. Enquanto esteve na KGB, ele jamais serviu nas Forças Armadas.
O senhor argumenta que Putin não tem nostalgia da URSS e sim do império russo, vide o título de seu livro. Dos líderes históricos do tempo dos czares, de quem o senhor acredita que Putin se vê mais próximo?
Ele é completamente sui generis, experimenta a História como se estivesse em um restaurante self-service, escolhendo pratos de acordo com a necessidade do momento.
Putin tem enorme reverência pela vitória soviética na Segunda Guerra. Por outro lado, em seus discursos pré-invasão da Ucrânia, criticou a União Soviética e a Revolução de 1917.
Na cabeça dele, a defesa a ser feita é de fato a de uma Rússia mais antiga, a dos czares. Presenciei russos comparando Putin a Ivan, o Terrível (1530-1584) e outros a Pedro, o Grande (1672-1725). Mas percebi que os paralelos dependem de quais aspectos do governo e da personalidade de Putin estão em foco no momento.
Do que não há dúvida é que ele investiu numa imagem de si mesmo como grande defensor dos russos, em nome de uma Rússia sagrada, excepcional.